Cinzas de outros Carnavais
A disposição para festejar já não era a mesma de anos atrás. A caminhada pela (literal) avenida exigia disposição que não lhe transbordava. Cansado de sambar - ainda que seus passos se resumissem aos dedos indicadores para cima -, entrou em boteco qualquer. Sentou-se junto ao balcão. Pediu uma cerveja, mas a fome que batia mais ritmada que o bumbo lá fora o forçou a ordenar também um salgado requentado do vidro. Enquanto a banda continuava a passar e ele encarava as gotas da garrafa gelada, a mascarada animada se aproximou do atendente posicionado atrás do tampo de madeira e pediu uma dose de Martini. O garçom lança a ela um olhar como de quem duvida da sanidade e do senso de localização da interlocutora, que responde rindo:
"Brincadeira, querido. Eu quero uma cerveja mesmo"
Reconheceu quem era. Apesar da fantasia, da tonalidade da pele mais bronzeada e do cabelo diferente, a maior mudança desde a última vez que lhe vira era no humor. A voz, porém, denunciara a mesma essência da pessoa já bem conhecida.
"Você sempre preferiu fermentados a destilados"
O olhar confuso encontra o irônico, enviado para clarificar as dúvidas dela. Risos e abraços são trocados. Após os cumprimentos iniciais, os sorrisos se tornam mais amarelos, as palavras mais polidas e os temas mais genéricos. Até encontrarem conforto um no outro, as primeiras frases são cautelosas, como quem anda tateando no escuro, se adaptando ao ambiente. Ele avança até o tópico mais tenso entre os dois: relacionamentos.
O término entre os foliões aconteceu a alguns carnavais atrás, mas isso não significava amnésia causada por ressaca moral ou pelo tempo. A justificativa dada a ele na época foi a que ela já não acreditava na sintonia com o rapaz e que tinha se apaixonado por outro. Se sentindo mais um Pierrot abandonado, o rapaz foi procurar consolação em outro país. A moça viveu com outros pares de braços, coxas e lábios o que tinha planejado viver com o cara sentado logo a sua frente. Porém, hoje já estava a 3 anos com um rapaz que conheceu pela vida.
Falava de seu atual de modo diferente. Apesar de compartilharem semelhanças - a barba cheia, os gostos musicais, o jeito boêmio de ser -, foram as diferenças entre o presente namorado e ele que atraíram a atenção do rapaz e o fez comparar e refletir sobre os desejos conjugais da ex.
Segundo o que pode extrair do bate-papo, o atual era mais romântico. Suas provas de amor iam de enviar flores no emprego até demonstrar cuidados quase que médicos nos dias de mal-estar dela. O novo parceiro era também inteligente no sentido lógico do conceito. A moça usou de 15 minutos para contar sobre como o atual encarou e resolveu um problema na empresa em que trabalha e em sua vontade de continuar os estudos. Era também atlético. Além disso, sabia como cozinhar, sem comentar em como era um exímio desportista. E outras tantas qualidades que formavam uma lista mais longa que uma serpentina.
Enquanto conversavam, o rapaz notou que ela não era a mesma pessoa com quem dividiu dias de sua vida. Concluiu que ela vivia em uma fase completamente nova. Um momento inédito ao lado do namorado, que já se fantasiava de marido. Parabenizou a moça pelo relacionamento. Ela agradeceu e se despediu, contando que deveria reencontrar as amigas, provavelmente perdidas no meio dos blocos.
"Foi bom te ver. Fico feliz de conversarmos numa boa sobre isso. Preciso ir. Tchau."
A menina saiu porta afora, mas o assunto ainda continuou como um samba cadente na cabeça do rapaz. Com a terceira lata de cerveja na mão, expressava seus pensamentos por meio de leves batucadas no alumínio estampado. Por certo tempo se martirizou por não poder entregar a alguém um sentimento como o que o dito atual fazia para a ex. Se subjugou, na esperança de encontrar forças para tomar rumo e deixar a vida de malandro. Pensou de novo e, em seguida, ergueu seu ego. Percebeu não ser tão inútil assim e encontrou atributos que, assim como os do tal namorado, também eram louváveis. Percebeu que a ex buscava algo que nunca poderia entregar e o que tinha não a fazia brilhar um sorriso no rosto. Que a fantasia que a ex tentava projetar nele durante o relacionamento de ambos não a servia, com o oposto também sendo verdadeiro.
Saiu do bar e entrou no meio da multidão, feliz de ser quem era - não um Pierrot abandonado, mas um Arlequim festeiro.
Junto com a noite, o carnaval encontrava com seu fim. Amanhã já era Quarta-Feira de Cinzas.
Junto com a noite, o carnaval encontrava com seu fim. Amanhã já era Quarta-Feira de Cinzas.
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