Distância entre olhos.

Alerta: Você só compreenderá esse texto se já amou quem nunca pode ter em seus braços

Ev'ry Time We Say Goodbye by Ella Fitzgerald on Grooveshark

 Eu lia o braile de teu corpo com meus dedos tentaculosos, abrindo vulcões expelidores de arrepio e hormônios em teus poros macios com o simples toque. Eu estudava a topografia de tuas idas e vindas montanhosas e desenhadas para fazer homens se acidentarem, marcando cada passo com um beijo para que, tal qual contos para crianças sapecas, eu voltasse pelo caminho que fui. Eu saboreei tuas peles, desde as com sabor adocicado de teus lábios até as de maciez salgada de teus grandes lábios. Em noites de tormenta, eu já dormi em teu peito desnudo e aconchegante, morando no espaço de teu coração. Em madrugadas de alegria eu já pousei minha cabeça e fiz morada na tua palma, arrumando um canto entre teus cafunés.
  Mas era comum acordar apenas com a lembrança de uma noite ilusória, além de tua pele em meu lençol, teu perfume no ar e tua respiração, pesada, cansada, velha e ofegante, em meus pulmões. As mãos vazias caçavam um outro contato, mas incansavelmente voltavam sem pescar nem mesmo a ilusão de te ter comigo.
  Realidade berra meu nome. "Acorda, Lúcio. Levanta, Lúcio. Ninguém te espera, Lúcio. Nem ela, nem outra em outro colchão, nem a vida." Realidade tem bons argumentos e sabe jogar. Conhece os passos que você vai dar no tabuleiro e sabe o contra-ataque. Triste saber que, quando joga contra a ilusão de ter alguém, Realidade fica burra e foge. Deixa que ganhem ou que derrubem as peças no chão, para depois catar os restos de cacos espatifados e, com a palma dolorida e o coração amargurado, se reestruturar na vida. 
  Eu estou aqui esperando. Sei que desse ônibus ela desce. Talvez traga consigo o resto da Realidade que ainda tenho como benquista. Ela vem de longe para me amar. Percorre a distância que apenas batidas de um coração apaixonado sabem contar. Esse intervalo dói, pois faz o coração bater fora de ritmo e apertado. É saudade de um beijo que não pode te pertencer. É a vontade que clama por o abraço de quem está a muitos braços longe. É a lágrima que caí de um peito repleto e transbordante de um amor sem fronteiras. É um amor que não nasceu para estar no mesmo espaço-tempo.
  Ela ainda não chegou para me amar. E eu, que costumava mantê-la na distância entre um olhar e outro, hoje não a tenho. A distância entre olhos aumentou e já não consigo cerca-lá até aonde meu olho já viu. Eu sinto falta do teu corpo, mirrado e branco, se apoiando em minha mão para uma breve dança. Eu quero de novo tua pele, macia e brilhosa, perto da minha. Preciso de teu olhar, perdido e procurando abrigo no meu, mais perdido ainda, mas que se faz de forte protetor só para você se abrigar. Necessito de tua respiração, pesada, cansada, velha e ofegante, mas revigorante.
  Hoje ela não vem. Sinceramente, nem amanhã, nem depois. Todo dia espero que venha. Que venha me amar como nunca fez antes. Mas não posso segurar seu pequeno e astuto coração. Ele quer voar. Sabe que consegue um amor mais perto. Mais eu ficarei aqui até o dia que vir. Incorrigível bobo esperando quem pegou o trem para o lado oposto.
  "Não derruba essa lágrima, Lúcio. Você que foi tolo de amar alguém com essa desigualdade de extremos. Ela não vai esperar por você, Lúcio. Você sabe que não pode ocupar o espaço de um amor no coração de quem não pode mantê-lo. Amor precisa ser regado por quem plantou, não pela terra em que foi plantado."  Realidade tá berrando lá dentro. Tá querendo se impor depois de ter escapado. Tá tentando gritar palavras de ordem para por ordem em mim. Eu, dessa vez, revido:

"Cala boca, realidade."

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