Cartas certas.
Parte I
Acordo. O ato de abrir os olhos já me é estranho e, ao finalizá-lo, a estranheza continua. O raciocínio ainda é lento e chega junto com a dor no globo ocular e na têmpora. Essa luz suja e difusa dói. As primeiras palavras que me vêem a cabeça são "que merda é essa?". Mexi a mão instintivamente para alcançar e pressionar a têmpora, crendo que o simples movimento pudesse fazer a dor parar por completo, como se algum remédio mágico estivesse nas pontas de meus dedos e que o alívio fosse instantâneo. Ao fazer isso, sinto um frio metálico em meus pulsos. O barulho de correntes só serve para aumentar a surpresa. A cabeça cai para o lado devagar até eu achar o causador do frio em meu pulso. Reluzente e inigualável, uma algema surge adornando o braço esquerdo. Com mais força para poder ir mais rápido, tento girar 180º de uma vez para ver o direito. A mesma cena se repete. "Que merda é essa?" eu penso, levantando os braços e me revelando presa. Scanneio o lugar. Na outra argola da algema, um metal branco sai do chão, passa pelo metal cromado e segue até a parede que fica de frente a cama (talvez uma maca?) aonde estou deitada. Na parede, uma portinhola à meia altura e outra no chão estão situadas em uma porta de ferro coloca na parede de tijolos laranjas à mostra.
Agora estou completamente assustada. As correntes das algemas são longas o bastante e permitem que eu pouse os dedos nas têmporas, mas agora a dor está mergulhada e anestesiada em angústia, desespero e susto. Me endireito de supetão, sentando as costas na cabeceira da cama. Olho em volta, consigo contar mais seis pares de canos brancos e seis pares de portinholas. Me assusto ao terminar de virar o pescoço e encontrar uma outra moça, no mesmo estado que eu, com os dois pés para a fora da cama, encarando a minha cara de perdida.
- Não tenta entender. Eu já tentei. Eu acordei a umas horas atrás. Acho que umas 8 horas atrás. Não sei direito. Eu gritei por socorro, chutei, chorei, xinguei. Nada. A única coisa que aconteceu foi que aquela portinhola abriu e alguém deixou um prato de arroz, feijão e frango para mim. Mas isso já faz umas... já faz umas... quatro, talvez três horas atrás.
Eu não compreendi a situação de uma só vez. Eram muitas perguntas, por isso, na metade do diálogo dela, eu me perdi tentando achar uma resposta para cada uma das milhões de questões em minha mente. Aonde? Quando? Como? Porquê? Quem?
Okay. Vamos começar pelo mais simples sobre mim e sobre a situação. Juliana Almeida Albuquerque. 25 anos. Filha de Marcelo Albuquerque e Suzana Almeida. Qual é a última coisa que me lembro?
Essa resposta demora um pouco mais. Ainda há pânico na minha mente para poder focar em lemb... espera... A mão na têmpora que servia para apaziguar a dor agora parece me ajudar a lembrar. O vestido que estou agora também. Era aniversário de alguém. Eu dancei muito e daí parei para ir ao banheiro... não... para comer eu acho... não lembro ao certo. É tudo apenas um conjunto de manchas. Flashbacks que não revelam muito, sem ordem cronológica correta por enquanto.
Eu ainda não estou a ponto de gritar. Talvez o sono ou, sei lá... quem quer que seja pode ter me dopado e ainda não tenho forças para tal proeza. Abaixo a cabeça. O que me resta por enquanto é uma prece aos céus para que isso, que mal começou, acabe. Ainda não vou aceitar a morte. A ideia ainda tem um gosto amargo e pesa no peito saber que posso ser morta. Quero sair daqui viva, só isso.
Uma ideia horrenda me vem a cabeça. Toco minha parte íntima, sobre a roupa, com a mão trêmula de medo. O simples pensamento que alguma coisa pode ter acontecido comigo enquanto eu estive dormindo me dá nojo. Acredito que não fui violada. Não. Isso não pode ter acontecido. Não posso me deixar acreditar. Tudo me ajuda a acreditar que não, já que aparento estar como estava na festa de aniversário. FESTA DE ANIVERSÁRIO DO FELIPE. É bom lembrar de mais alguma coisa. Reconforta um pouco, em meio ao medo e as milhões de dúvidas.
Olho para o lado e vejo a moça que conversou comigo minutos antes. Agora eu a vejo atentamente e não apenas a enxergo com um olhar descobridor. Ela é mulata, com lindos cachos caindo sobre os ombros. Está assustada, eu posso ver, mas aparenta cansaço. Desistiu de tentar fazer qualquer coisa. Consigo ler a tristeza em seus olhos, agora já fundos, provavelmente de tanto chorar. Está vestida bem também. Nada de vestido, mas uma camisa azul, com pontos reluzentes no torso abaixo do começo dos seios e transparência no busto e uma calça preta, além brincos, colares e pulseiras. Atrás dela, consigo ver mais corpos deitados, totalizando 5 seres que ainda não sabem o que está por vir.
- Que horas são?
- Não tenho a mínima ideia. Oi. Eu me chamo Aline. Como eu disse antes, eu já tentei de tudo. Você se lembra de alguma coisa antes de acordar aqui?
- Uma festa de aniversário de um amigo. Não me lembro muito do resto.
- Calma... vamos ter tempo de sobra lembrar aqui, nesse cativeiro - disse ela, olhando para o ambiente e soltando a frase com um tom melancólico e depressivo.
Detesto que ela esteja certa.
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