Sangue e batom.


Era tarde demais para as últimas palavras serem chorosas. Se bem que, se dependesse dela, isso seria a única coisa capaz de não acontecer. Acontecia sim uma lágrima manchada de rímel, que fazia rapel na pele branca. A dor era excruciante, mas nada parecia a afligir mais do que se  passava dentro da cabeça da morena. Na barriga, o buraco formado no corpo expelia uma mistura líquida de cor vermelha que continha ira interna e luxúria passional, pecados que ela cometia com sabedoria. Fruto de uma tentativa de estupro, o projétil se escondia dentro dela, aproximadamente entre o estômago e o cólon transverso. Quem atirara nesse momento já estava planejando a próxima vítima para saciar a vontade, aliado de seus amigos. Torcia ela pra que o veículo dos mal feitores capotasse.
Podia ligar para a polícia, para a ambulância ou para a família (ou o que restava de uma), mas apenas seu amante a interessava. Não ligou. Esperaria mais um pouco para que assim dissesse apenas o essencial. Talvez um "Levei um tiro.  Estou perto do parque que visitamos mês passado. Vou estar no bar da frente. Adeus". Recostada em uma pedra fria, se levantava aos poucos. Caiu de barriga para baixo, deixando uma pedra entrar no furo. Soltou um "merda" gutural, logo acompanhado de sangue, que limpou na jaqueta. Se levantou, tirou o telefone do bolso para fazer a chamada. Mais lágrimas escorreram, porém nenhuma resposta do cara.
Fechou a jaqueta de couro para esconder a blusa vermelha, que na verdade era branca. Pensou em como o dia tinha começado e lembrou que essa brincadeira de sangrar foi, em parte, culpa da própria. Com vontade de trair, ela tinha acordado ao lado dele já planejando a noite. O rapaz do telefone, que era o homem mais próximo de um ideal para ela, era daqueles frio, que aparecia durante a noite, consumava o ato e sumia. Era do jeito que ela queria. Telessexo, com direito a algumas caminhadas pela cidade. Quando ficava mais tempo é por que ambos queriam mais do outro. Nada muito sério, mas muito sério. Faziam isso ao longo de 3 anos: já não era só sexo. Ela tinha carinho por ele, mas engolia tão naturalmente quanto a saliva.
Caminhando em direção ao bar, no meio do matagal, sentiu um galho um pouco mais rígido cutucar o ferimento. Dessa vez, o "merda" não passou da primeira sílaba, saindo com a segunda parte da palavra ensanguentada. Limpou com a mão, esfregando sangue e batom vermelho no rosto. Batom esse que passou para arranjar um cara na balada mais povoada da cidade. Queria testar sua malandragem nas pernas de outro, eliminar o que achava ser amor e voltar para a cama. Talvez chamasse ele novamente para se deitar com ela. Se conseguisse finalizar o segundo sexo da noite, ela tinha retomado as rédias da situação; se se sentisse culpada, não tinha mais jeito. Jogou o feitiço no homem mais charmoso da pista de dança, porém o feitiço retornou contra a feiticeira.
Ligou novamente para o cara. Ele atendeu. Ela, muda, tentou dizer o que tinha planejado, mas improvisou fora do script, gaguejando entre palavras, choro e sangue. "Me desculpa. Eu te amo. To no bar perto daquele parque que fomos mês passado. Vem me buscar. Levei um tiro de uns babacas que tentaram me estuprar. Eu neguei. Vem me buscar, por favor". Desligou. Ele ligou de novo, mas o celular já estava perdido depois de ser arremessado no meio da floresta. Palavras de mais e vida de menos, ela já tinha alcançado o balcão. Pediu uma dose de vodka, recebeu uma cerveja e uma cara de "temos apenas isso, se satisfaça" do balconista grandalhão e porco. Ao redor, as putas torciam para os jogadores da mesa de sinuca. Gritavam com toda a força de seus úteros usados.
Tomou um gole de sua bebida. O que não entrou nos portais em formatos de lábios voltaram de cor escarlate dourado. O sangue e a bebida dançavam no copo sujo. Suas reviravoltas foram lançadas para além da linha que finalizava o objeto de vidro com marca do batom. Com piruetas líquidas, o dançarino dava voltas no ar. No fim de sua performance, o corpo do acrobata se desfazia ao tocar o chão. A poça de bebida fazia companhia para o corpo da moça, que chegara centésimos antes. O copo, que agora se despedaçava, era o terceiro lugar. Na cena, cacos, bebida e um corpo que se mostrou ensanguentado dão espaço para um homem parado na porta. Ele tinha chego tarde demais.

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