Entre dois amores.

 Uma de cabelos negros e pele branca. Sempre fria, séria, consistente em um único objetivo: seu próprio prazer, saciando sua ânsia demasiada. Moça de muitos, odiada por muitos mais e temida por outros tantos de muitos. As roupas consistiam em vestido com meia-calça ou camisa, calça jeans e bota, sempre acompanhados de sua jaqueta de couro, formando um conjunto nunca de outra cor senão preta. Contrastando com os braços brancos, o desenho da caveira do Dia de Los Muertos coloria a pele áspera. Os olhos lembravam a cavidade ocular do desenho que carregava consigo: fundos e com olheiras, ela destacava-os com maquiagem escura contornando o olho escuro de nascença. Dominava a língua alemã, coisa que só uma nativa poderia fazer igual, transitando por acusativos e genitivos com uma seriedade de uma blitzkrieg. Acessórios? Apenas uma carteira de cigarro e do canivete no lado de dentro da jaqueta. Sempre acompanhada de copo de bebida, o canivete com lâminas de várias formas passava por entre os dedos ou era lambido como forma de sedução demente. Eu jurava por Deus que ela já havia se cortado várias vezes, fazendo de sua língua uma estrada bifurcada, uma língua de cobra com veneno suficiente para deixar um homem louco. Mas com essa menina, jurar por Deus não significava nada. Não há entidade superior nem mensageiro de espírito algum na terra que pudesse iluminar tal alma. Ela era sua própria entidade superior e não trabalhava com mensageiros. E eu a amava.
 Essa não. Essa era diferente. Seu sorriso era quente e radiante. Sua pele, quase mulata, transmitia um vigor em um aspecto alaranjado e que não negava o caráter latino e alegre. O cabelo só podia ser dourado como uma pepita que foi refinada no fogo de um vulcão e esfriada nas águas do Caribe várias vezes. Era angelical, musical, poética, animada, inteligente, otimista e enérgica. Falava francês fluentemente, seduzindo com sua linguagem românica romântica. Roupas eram coloridas: sabia se vestir sendo fofa e sensual. Seu corpo era robusto e curvilíneo. Saudável, seu único vício - como humana e passível de erro - era chocolate. Dormia enrolada em mim nos dias de frio, como uma gatinha manhosa. Também era tatuada: um belo pássaro azul um pouco acima do joelho. Sempre que deixava sua tatuagem à mostra me animava e me excitava ao mesmo tempo. Quando passava longos períodos sem me ver, ao fazer isso, saía correndo para me abraçar, não importava o lugar nem a situação. Eu não conseguia odiá-la. Trazia na sua bolsa - acessório indispensável - um chaveiro de um ursinho de pelúcia. Era invejada, pois parecia que tudo dava bem para era, mas a maioria de quem a conhecia bem gostava. Conversava com todos por que tinha conteúdo para falar de política com os mais velhos ou de pandas com as crianças. Era iluminada pelos céus, com toda fortuna de sorte que os deuses tinham. E eu a amava.
 Sachate Ohara, descendente de avós irlandeses por parte de pai e com o nome que a mãe, brasileira e semi-analfabeta "leu" na bíblia e gostou da sonoridade. A versão de Shachath - destruir, ir à ruína - combinava com o corpo que carregava tal nome, mas que preferia ser chamada de Sacha. Quando estava com ela, não me permitia errar ou sorrir. Um amor para dias nublados e para noites sem fim. Me fez comprar uma moto potente, mesmo sem ter condições para bancar tal beleza, mas por pura luxúria de andar no veículo a 100, 125, 175 e 200 pra mais quilômetros por hora. Quando queria seduzir, me fazia parar no acostamento e ali, no meio do nada ou do tudo, arrancar a minha camisa e seu sutiã, sem contar o resto, e arranhar as minhas costas por simples questão de prazer. Me traía. Eu sabia e ela me confirmava, dizendo que mané nenhum a amarraria, mesmo o mais amado dela. Ele despertava o pior em mim. Durante a semana, seja no escritório de engenharia ou na obra, tratar mal funcionários e querer acertar um tijolo em operários ineficientes me fizeram por vezes beirar a demissão. O gasto com drogas, de qualquer estilo, me trazia um vício e uma depressão mortal. Mas eu a amava.
 Angélica Santos da Luz. Não havia nada mais divino que merecesse tal nome. E desempenhava bem a função de abençoada, viu? Quando não trabalhava de professora em uma creche municipal, ajuda nos hospitais, asilos e orfanatos. Ia com ela e podia ver o sorriso de doentes, velhos e crianças, todos contagiados pela pessoa que os abraçava, ouvia e contava histórias. Me fazia ir na igreja, na qual também ajudava, e me fez gostar de procurar nos céus um conforto e agradecer por ter uma mulher como aquela. Gastava com ela em presentes caros para valorizar a beleza dela, passeios no parque, cinema, e viagens pelo mundo a fora. Podia ser mulher para ficar a vida toda, senão fosse pelo ciúmes doentio que me causava. Não era inocente, mas sua bobagem diante da malícia de muitos me tirava do sério. Porém, com algumas palavras calmas me fazia voltar a amá-la, pois não conseguia odiá-la. Não era ousada no sexo, mas tinha um jeito acolhedor de amar. Ficava bobo durante a semana, só pensando em como ela estaria ao chegar em sua casa, em qual lugar a levaria e o que deveria levar para tal criatura angelical, me fazendo render mil vezes menos. Pensava em não fugir do lugar comum: uns filhos, talvez uma fazenda ou uma bela casa ou apartamento na cidade e a sua companhia. Muitas vezes me peguei nesse sentimento morno. Mas, mesmo assim, eu a amava.

 Não queria nem a vida demais, muito menos chegar perto da morte. Era o sexo com tristeza e depressão ou amor com mornidão e ciúmes. Nenhuma das duas era aceitável. Aceitei então a solidão como opção.

 Um mês. Com dias contados, me dei esse tempo, sem atender nenhuma nem outra. Não atendia ordem de passeios pelas estradas nem pedidos para ir para igreja. Trabalhava como um burro, sem pensar e nem imaginar mulher alguma. Rendi o que não rendia a meses. Senti prazer nas moças e nas putas, mas não era o que sentia com Sacha nem com Angélica. Era puro como uma moça, mas não puro como Angélica. Era sujo com uma puta, mas não sujo como Sacha. Descobri que vivia num coma. Nada mudava. Nenhum sabor de whisky barato nem de chocolate importado. Nenhuma moto potente nem um avião para sei lá onde. A vida voltou a ser pacata como nunca me lembrava ser com as duas. Não podia ser daquele jeito. Tinha que ter outra solução. E tinha.

 Apresentei uma a outra. Abri o jogo. Angélica chorou. Sacha riu. Dei tempo e joguei a proposta na mesa. Houve relutância, mas sabia que era apenas questão de tempo. Eu precisava das duas tanto quanto as duas de mim. Sacha podia ter outro, mas sabia que não causava o mesmo efeito em outro na quantia que causava em mim. Angélica necessitava de mim para radiar como radiava antes. Eram únicas e eram feitas para mim. Uma precisando de um pouco de maldade e outra do oposto.

 Eu? Eu rendia o exato no trabalho. Projetos levavam o tempo certo. O dinheiro rendia o bastante para um apartamento com Angélica e uma moto na garagem, além de sustentar minha amante explícita e viagens para vários cantos do mundo. O sexo era puro e o amor sujo, do jeito que sempre deveria ser. Uma tatuagem resumia tudo: um pássaro azul sobre uma caveira. A vida era boa novamente com a dose de morte na quantia certa.

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