I've got no strings to hold me down
Desde pequeno, ao observar uma briga dos pais, decidiu transformar seu diário em um manual de vivência, justificando que, quando adulto, não tornaria a repetir tais erros. Com seu caderno de capa escura e sua caneta de pressão, a mania de anotar coisas se tornou uma obsessão. Anotava desde coisas úteis, como o lugar onde deixara o molho de chaves, até coisas irrelevantes e sem sentido, como a temperatura da macarronada feita pela avó em uma tarde qualquer de 2003.
Com o passar do tempo, de rabiscos feitos dentro do ambiente familiar, levou sua loucura para as ruas. Escrevia coisas sobre estranhos e conhecidos. Roupas, corte de cabelo novo, mancha esverdeada na parte de trás do braço, comentários avulsos, etc.
Apesar de tomar nota de tudo, os relacionamentos amorosos dominavam seus papéis. Obviamente isso era ligado com a história de seus parentes, mas agora, entrando na puberdade, fazia disso parte de um experimento. Redigia os padrões encontrados nos diversos casais e também as nítidas diferenças entre eles. Comparava narrativas hollywoodianas com fofocas dos ônibus.
Resolveu por em prática suas anotações.
Foi infeliz. Por algum motivo desconhecido, os caminhos traçados para o sucesso de seu experimento não o guiou para um resultado positivo nem confirmou suas hipóteses. Decidiu parar de escrever e de entrar em um relacionamento. A página 153 do volume 13 de seu caderno falava "Ilusões, tanto em termos técnicos quanto na prática, ainda são ilusões".
Cresceu e durante anos um demônio se contorcia dentro do peito. A vontade de retornar ao papel e a caneta era maior que seu autocontrole. Mesmo assim, demorou anos para continuar suas observações. Quando voltou com sua obsessão, continuou a escrever sobre relacionamentos e notou que certas observações de sua adolescência eram parecidas com as atuais. Decidiu colocá-las em prática novamente, porém não em seres humanos diretamente.
Decidiu que estava apto para ter alguém compatível com seus desejos. Empírico, pensou que já tinha passado por muitas coisas e aprendido o bastante, tanto nos livros quanto na vida, a ponto de poder ter um produto bem sucedido, resultado de suas vivências. Um self made man pronto para praticar seus conhecimentos.
Construiu para si uma projeção de acordo com seus apontamentos recolhidos durante anos. Um corpo desenhado por sua mente e levando em consideração gosto pessoal foi criado. Foi o designer de seu próprio manequim perfeito em busca de um espírito que o desse vida.
Estava na hora de testar em indivíduos da cidade. Acordava todo dia e sorteava uma alma para provar seu molde. Dizia a si mesmo "Eu tenho que fazer alguém me amar" diante do espelho e, ao olhar para suas vítimas, repetia "Oh você é tão sortuda".
It's a match
As curvas, o humor, o intelecto e outros elementos que projetara em seu molde eram compatíveis com a cobaia. O encaixe perfeito parecia ser sinônimo de sucesso.
A cobaia transbordou a caixa que foi colocada. Expandiu e quebrou o molde. A última frase escrita no caderno, agora empoeirado novamente, foi dita pela manequim viva. A descrição era a seguinte:
Enquanto ela termina de se arrumar, eu começo a anotar. Levantou da cama apressada. Vestiu as roupas sem ouvir minhas súplicas. A cena, similar a de minha infância, agora era vivida por outro ângulo. Eu não sou mais telespectador. Agora, já com as malas [mal feitas] em mãos, ela me diz: "Não dá mais". Ilusões, tanto em termos técnicos quanto na prática, ainda são ilusões.Out. 18. 2015
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