macht kaputt was euch kaputt macht


A cidade tinha cheiro de mijo masculino, esgoto e poeira de carro. Cães e moradores estão estendidos embaixo das marquises. Petit-pavê soltos torciam passos, maltratando calcanhares. O tempo era inimigo dos pedestres, trovejando ameaças após macularem  os transeuntes com quentura descomunal. A cidade era a mesma. Eu não.

Desfazendo as malas no quarto, eu reconheço as formas: camisas, calças, tênis, objetos...todas as formas que retiro da bagagem eu conheço de cor, porém não são mais minhas.

Todas as formas pareciam as mesmas de antes, mas todo o conteúdo está esvaziado de significado.

Meus olhos caem sobre o quarto. Também não me pertence.
Me olho no espelho. O ser que me encara é um completo desconhecido. Ele encara as minhas roupas. Me despe. Ele, assim como eu, não me reconhece mais. Mala. Quarto. Apartamento. Cidade. Como se não bastasse tudo isso, não reconheço-me mais. O chuveiro parece o lugar correto para arrancar de vez a pele de cobra que cobria meu ser.

No peito, a vontade latente arde, soca o peito, esmurra as costelas. O coração dá lugar a um touro sendo penetrado por lanças. Cede lugar para um cachorro raivoso preso em uma corrente. A vontade que machuca é a de mudar.

Amanhã a rotina é a mesma: universidade, relações voláteis, trabalho, hipocrisia, trânsito, falsidade, amores líquidos.

Não há cerveja que alegre, vinho que acalme, vodka que transmute ou água que purifique.

No pulso, "Macht kaputt, was euch kaputt macht". Quanta ironia. Quem diria que o que me "kaputt macht" seria eu mesmo? 

Agora a solução é clara: me "macht kaputt".

Na cozinha, nu o meu corpo jaz. A lâmina reluzente e prateada entra na pele e se mancha de rubi. A vontade que ardia o coração para. No bilhete ao lado eu deixo escrito: "que morra a lagarta dentro da crisálida e que viva livre a borboleta".

Lá fora as gotas caem estupidamente nos petit-pavê. Pedestres tomam emprestado os alpendres que cães e mendigos dividem. O ar é purificado. A cidade chora minha despedida. E você: saberia você da minha rápida e humilde existência/desistência?

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