Santa's stories - Não-el



 Crianças. Luzes. Multidão. Vozes. Sacolas. Verde. Vermelho. Dourado. Branco. A magia natalina estava de volta. Era o sexto Natal na vida de Emanuela. De todos os dias do ano, este era o favorito. Para a pequena, a vida tinha um gosto diferente na semana que antecedia o Natal. As ruas eram movimentadas, os vizinhos cordiais, as casas e shoppings mais verdes, as cores mais brilhantes e os brinquedos melhores. A família reunida em volta da mesa a deixava alegre, fazendo-a esquecer da hipocrisia dos outros 364 dias.
  Na fila para conversar com o Bom Velhinho, se encantava com as famílias e conversava com outras crianças próximas a ela. Não compreendia o choro de alguns menores, afinal de contas era época de rir e celebrar, mas não de chorar. Conforme sua vez chegava, Emanuela se empolgava. Pensava no que dizer. Não era tola e sabia da verdade sobre o Papai Noel, mas não queria abrir mão de conversar sobre como tinha sido durante o ano todo, os votos de paz e amor para o ano seguinte, puxar a barba branca e escutar a risada icônica. A sua maior recompensa era sentir como se o mundo estivesse em comunhão e harmonia. Mas logo ela aprendeu que o mundo nunca estava e nunca esteve, muito menos estará em harmonia.


***

 Crianças. Angústia. Luzes. Taquicardia. Multidão. Sofrimento. Vozes. Tortura. Sacolas. Depressividade. Verde. Choro silencioso. Vermelho. Gritos sufocados. Dourado. Raiva. Branco. Dor. A magia natalina estava de volta. Era o vigésimo sexto Natal na vida de Emanuela. Já se passaram duas décadas desde o ocorrido. Ela não lembra a muito tempo o sabor de uma vida plena, com sonhos e sorrisos. Mas ela se lembra perfeitamente do dia em que sua vida rumaria para um caminho de cores cinzentas.

 Chegara a sua vez. Depois de longos minutos de espera, a Emanuela de 6 anos saborearia novamente o momento. Caminhou até o trono dourado, onde um senhor de pele branca e bochechas rosadas a esperava. Os pais ficaram para trás, acompanhando distraidamente a filha, esperando para tirarem uma foto e chegarem no conforto de casa. Quando chegou em frente ao trono do velho de roupas avermelhadas, a menina foi recebida com um longo sorriso de dentes amarelados, tingidos pelos anos de café e cigarro, e com um "Olá, pequenina. Qual o seu nome?". Emanuela retribuiu o sorriso com seus dentes de leite brancos e recitou alegremente seu nome. O velho a agarrou pela cintura e a pôs gentilmente entre as pernas.
  Algo, a partir daquele segundo, não estava mais correto. Emanuele conseguia sentir. Desconfortável e agora séria, a menina olhou para cima. Seus olhos verdes leram uma risada pesada sob a barba cacheada. Por debaixo dos óculos dourados falsos, olhos castanhos enrugados caiam sobre os dela de maneira diabólica. Sentia sua inocência sendo devorada.
 Papai Noel prosseguiu com a conversa, questionando seu comportamento ao longo do ano. Incomodada e desnorteada, Manu respondeu de forma ríspida que sim, tinha se comportado bem. O velho agora indagava sua performance em sala de aula e em casa. Enquanto respondia, conseguia sentir suas costas tocando cada vez mais no farto abdômen do velho. Os dedos tentaculosos dele escorregavam lentamente pelo corpo. A respiração pesava em seus cabelos longos e negros. Ele se aproximava lentamente e seu tato a dominava de maneira pejorativa. A magia foi quebrada e agora seu maior pedido para o Papai Noel era o de sair do assento dele o mais rápido possível.
  Agora ela olhava assustadamente para frente enquanto a voz grave ecoava atrás de si. "É claro, você é uma boa menina. Uma menininha maravilhosa", ressoava, enquanto os dedos roçavam a coxa. "Hora da foto, Manuzinha?".

 A imagem era fresca, mesmo 20 anos depois. Emanuela de 26 lembra que a Emanuela de 6 anos não entendeu o que tinha acabado de acontecer. Se sentia diferente dos outros anos. Se sentia estranhamente suja. Não uma sujeira de brincadeiras, que ficavam grudadas nas roupas, mas sim uma sujeira impregnada em sua carne. Se lembra de ter levado uma bronca dos pais por ter tomado três banhos naquela noite. Só parou de se sentir estranha ao dormir.
 Agora Emanuela repudiava homens, optando por amar outras mulheres. Seus Natais eram tentativas de ficar sozinha em seu quarto e que acabavam em choro. Dezembro era um mês de torturas e angústia. Porém, não hoje. A lésbica, traumatizada e frágil Emanuela decidiu que faria diferente dos outros 25 Natais que vivera até então e dos 20 Natais desde a data de seu abuso.

 Hoje ela comemoraria de um jeito especial. Tudo planejado a tempos. Estudado anos a fio: Emanuela iria assassinar Papai Noel.

 Sentia que precisava fazer isso. Sentia que era parte do ciclo a ser completado: A vida, simbolizada por Jesus, o motivo da comemoração. A alegria, simbolizada por ela como criança. O sofrimento, simbolizado por ela durante os 20 anos de seu trauma. Por fim, a morte, que a esperava em vestes vermelhas e barba branca.

***

  A cidade acorda assustada. A notícia da morte de 25 senhores, coincidentemente Papais Noéis de shoppings espalhados pela capital, quebrou o espírito de alegria da ceia da noite anterior. A comoção, o choro das famílias e as fotos das vítimas eram amplamente comentados em programas jornalísticos.
 Zapeando pelos canais com o controle em sua mão e com uma taça de vinho tinto na outra, vestida de Mamãe Noel e sentada em uma poltrona de tecido dourado, Emanuela sadicamente ria sozinha em sua casa, abandonada em uma região periférica da capital. Ainda estava suja de sangue.
  Levantando a taça, ela pronuncia um brinde:

- Feliz Natal, filhos da puta. 



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