Estória suburbana

Pedro José vem chegando ao longe. Como sempre, a vizinhança sabia que ele estava chegando antes mesmo de chegar, pois ruidoso Pedro José era. Cantarolando obscenidades, pigarreando catarros, cuspindo cantadas às moças, engolindo destilado vagabundo e tragando Marlboro, Pedro José era o retrato de um Quincas Berro D'água. Provavelmente hoje foi dia de pagamento, visto que outros sete bêbados empilham passos tortos ao redor de Pedro - que tinha a imbecil mania de gastar 150 reais logo após pegar o não-tão-volumoso salário com "amigos", vadias baratas e apostas irracionais. Os postes projetavam uma luz de um amarelo doentio entre a penumbra das onze, fazendo com que sombras dançassem embaixo do caminhar alcoólico uma melodia insensata. 
Pedro José se despediu do metrô de trilhos curvos que era aquele conjunto de boêmios andando pela calçada. Essa era a rua dele e agora ele marchava em direção ao seu lar. Com o peito amostra e carregando uma medalha de São Judas Tadeu, ele era apenas um selvagem vestido de camisa social amarrotada e calça social suja com manchas de bebida, gozo e respingo de mijo. Pedro era a imagem deplorável de um ser humano que regrediu aos instintos naturais. Apenas um macaco que sabia falar. Depois de desviar de poças e postes e de se levantar após tropeçar em si mesmo, o caminhar torto para na casa azulada e de portão branco. O suburbano chegara em sua medíocre residência na periferia. Deu um berro gutural ordenando que Maria de Fátima abrisse o portão, por que ele esqueceu - novamente - de fazer a cópia. Maria de Fátima abre o portão automático lá de dentro, escondida e temerosa. Ela conhece a rotina e já sabe o destino. Ela consegue ler como aquele vulto contraluz e assombroso está, e, mesmo esperando o contrário, sabe o que está por vir: hoje ela apanha.

Maria de Fátima ... ah ... Maria de Fátima ... essa sim ... Maria era uma daquelas Amélias de Atenas, uma mulher de verdade, sem gosto ou vontade. Durante a semana, a insossa Dona Fátima faxinava a casa e ganhava um trocado com a venda e conserto de roupas das comadres de quarteirão. Católica de família, visitava aos domingos a igreja evangélica próxima de casa por questões de comodidade e por ser simpática a alguns ensinamentos, mas era quente demais para ortodoxos e morna demais para pentecostais. Depois se dirigia à feira, comprando suprimentos bons e xepa bem cuidada. Ia para casa, abençoava o alimento e preparava com maestria uma comida de chamar a vizinhança pelas narinas. Ia ver um filho do primeiro casamento na penitenciária e outro no hospital para doentes mentais (a.k.a. hospício ou manicômio, como o leitor decidir). Voltava com o coração vazio de esperança e os olhos lotados de lágrimas. O filho do atual casamento com Pedro tinha crescido e criado asas. Chamou a mãe para junto de si, admitindo que o canalha do pai não prestava. Ela bateu o pé e ficou. A dúvida era "O que ele vai fazer sem mim?", mas a verdadeira pergunta se pronunciava "O que eu vou fazer sem ele?".
Inútil e dependente, Dona Maria achava que era pó sem o amado ao lado. O amado ajudava a confirmar essa tese, humilhando a grisalha, reprovando atos ridículos como um café sem açúcar ou uma camisa manchada de água sanitária - que só tinha sido usada para tirar as manchas feitas por Pedro e supracitadas.
Ele chega com uma carranca, vira até o quarto e entra no banheiro para um banho. Quarenta minutos depois ele grita de lá que esqueceu a toalha, mas Maria não escuta, uma vez que a TV está ligada e o banheiro é longe da sala. Com a voz claramente mais nervosa, ele berra novamente. Maria se alerta, abaixa o volume da TV e, com passos calmos, chega até a porta do quarto, indagando o que Pedro José quer. Ele explode, xinga e alega que é a terceira vez que grita implorando pela toalha. Prestativa, ela dispara até o varal, recolhe e volta correndo, temendo a próxima reação do marido. Com as mãos ainda molhadas, ele silenciosamente pega a toalha e a suga para dentro do banheiro. Maria volta para a sala e aumenta novamente o volume da TV, mas não é a mesma calma mulher que sentou aqui há minutos atrás. A mente se congestiona de pensamentos e se sente culpada por uma coisa que demorou a fazer ... Uma coisa que ele esqueceu de fazer antes. 
Como uma epifania, ela realiza que o erro primordial foi dele. Esse pensamento, mesmo sendo comprimido pela culpa de ter demorado, começa a crescer em sua mente, fazendo com que o julgo fique mais leve sobre as costas. E assim como ele errou por ter esquecido a toalha, ele também errou ao manchar a roupa e a fazer usar água sanitária. Ele também errou quando ele não fez o café com a quantidade de açúcar que queria ao invés de esperar que ela fizesse. E quando perdeu o dinheiro em uma aposta, ela não errou ao indagar. Foi ele que não deveria ter apostado o salário.  E quando bateu o carro, ela tinha o avisado para tomar cuidado, mas ele não a ouviu.

"Ele errou ... e errou também ... e também quando ... e errou quando ... e errou ..."

E, assim como lenços de um truque de mágico, amarrados uns aos outros, os pensamentos iam trazendo outros e fazendo com que um sentimento crescente surgisse em Dona Maria de Fátima. 
Mas a presença dele na sala faz com que o clima leve dê lugar a um temor. Ele segue para a cozinha. A janta está posta na mesa. Maria hoje preparou polenta, costela, arroz e feijão. Ele pega um prato, coloca a comida e, na primeira garfada, uma reclamação:


"-PORRA ... essa merda está gelada."

Ela finge não escutar. Aquele pensamento de "não, a culpa não é minha" ainda está impregnado na cabeça e, mesmo com o medo e com o instinto de não duvidar, não ignorar, não revidar ou não respondê-lo com grosseria, ela segue com uma postura firme. Ele, ao invés de esquentar o prato, esquenta sua raiva e faz com que o ódio borbulhe dentro do peito. Ele chama de novo, esperando uma reação da interlocutora:


"-PORRA ... NÃO OUVIU NÃO? ... ESSA MERDA TÁ GELADA"

Maria de Fátima aumenta ainda mais o volume da TV, inibindo sons e demonstrando não ligar para Pedro José. Ela sente o rosto vermelho. Em toda sua vinda, nunca esteve naquela posição; situação de ignorar chamados e revidar passivamente insultos. Nunca esteve nesse campo, mas sentia que não deveria voltar atrás. A cada segundo de silêncio, sentia que avançava com coragem, mas com um rumo e um final incerto. Suas fichas estavam todas nessa jogada e ela estava disposta a se mover e esperar a reação do outro jogador. Mas esse jogador era Pedro José. Ele era incisivo e, se ela pensou que ele desistiria, o erro foi dela.


"- SÓ PODE SER BRINCADEIRA. A VADIA VAI DAR UMA DE SURDA PRA CIMA DE MIM. NÃO ME BASTA TRABALHAR O DIA INTEIRO, TER QUE LIDAR COM SUA LERDEZA E, NEM NA HORA DE COMER EU..."

Ela não escuta mais nada. Sabe que Pedro continua reclamando, mas só ouve zumbido. Tudo se move lentamente. Em sua mente, hormônios parecem estar dançando em um ritmo frenético. A voz dele é um convite para uma guerra. Depois de muita reclamação, ele para. Maria aproveita a deixa e vira a cabeça lentamente. Mesmo de longe, olha nos olhos do marido. Solta como se fosse uma expiração:


"-Quer comida quente? Esquenta você."

Depois de recitar suavemente a frase, volta a cabeça para a TV de novo. Pedro José fica atônito. O ódio explode dentro de si tal qual lava de vulcão. O sangue pulsa e as veias do pescoço saltam. Os punhos cerrados acertam a mesa de madeira. O estopim sempre começa com a típica pergunta:


"-O QUE!!!!???"

Maria de Fátima desliga a TV. Levanta como uma dama. Se dirige ao centro de um palco imaginário. O canhão de luz está nela e o show dessa vez é dela. Ela caminha em direção a ele. Com um sorriso cínico no rosto e com uma voz calma, Maria parece sussurrar a resposta:


"-Você quer comida quente, vagabundo? Esquenta. Se vira. Eu não sou mãe nem babá de marmanjo."

Ela está ao lado dele. A voz é baixa e envolvente, fazendo com que um clima tenso tome lugar e mate os gritos de Pedro.

 "E, se você ousar gritar comigo ou me bater novamente..."

Ela coloca a mão na comida.

"Eu te mato."

Maria passa a mão de comida no rosto do marido. Com intenção de humilhar ainda mais, ela cospe no rosto do cônjuge. E, como um tsunami, um grito gutural sai dela:

"OUVIU? EU TE MATO, DESGRAÇADO"

Pedro se levanta. Coloca a mão na cintura. Lá, brilhando um brilho metálico e fosco, reside uma arma. Ela a saca. Insanidade. A coragem de Maria se esvai. Gritos dele. Choro dela. A cozinha vira uma cena de selva. Animais gritando e girando. Ela foge da arma. Ele segue ela. Maria ajoelha, pedindo clemência. Se arrasta, fugindo do marido, que ainda tem sede de uma justiça que ele crê ter direito. Pedido de desculpas. Ele grita. Uma das mãos atinge o rosto de Maria com um tapa. Um pé a atinge nas costelas. Ela continua se arrastando de costas até encontrar a parede. A batida das costas nos tijolos é forte e faz com que uma cruz de madeira pendurada na parede com um Jesus crucificado feito de ferro e caia ao lado de Maria. Ela lembra de Deus, ora, pede ajuda aos céus, segura a cruz entre a sua cabeça e a ponta da arma. Pedro solta uma gargalhada e diz que espírito nenhum a salva hoje. Ele dispara.

O azulejo branco e limpo é banhado de vermelho. O corpo cai.

Pedro ainda está vivo. Maria, com os olhos fortemente fechados, sente estar viva também. Ela abre os olhos, passa a mão em seu corpo e sente: não há sangue nela. Olha para a cruz. O Jesus de ferro está retorcido e irreconhecível. Quem está no chão é Pedro, com o ombro sangrando, atingido por um tiro ricocheteado. Ela solta uma gargalhada, beirando uma maleficência. O prazer que sente ao ver o marido jogado ao chão é imenso.  É um doce sabor de vingança que percorre os lábios e beira o amargos. Mas ele ainda está vivo. Pedro tenta se recompor e procura a arma, caída próximo ao braço machucado. Num lance de loucura e de autodefesa, Maria pula em cima de Pedro e, usando a cruz como espada, finca a parte longa da madeira no peito de Pedro. A madeira invade a pele, empurra músculo e quebra osso. Os pés de ferro de Jesus cavam uma valeta nos músculos de Pedro. Mas não é o bastante.
Seis, sete, oito crucificadas depois da primeira, Maria cessa. Está exausta, banhada em sangue, assim como Jesus. O esguicho de líquido rubro continua saindo do corpo, agora definitivamente sem vida. Maria enxuga com as costas da mão uma gota que caiu dos olhos e toca a bochecha. Não é uma lágrima e sim uma gota de sangue que deslizava em seu rosto. O sangue é quente e revitalizante. É símbolo de um ódio guardado por décadas. Ela sabe que não é certo, mas parece ser certo. Um sorriso começa a sair de seu rosto. Aparentemente, tal como uma viúva negra, ela sente prazer em ver o corpo do marido perdendo a alma. Consegue sentir o espírito se esvair. Consegue respirar e sugar a alma para dentro de si, revitalizando-se com ela. Um prazer imenso e bom. Tudo o que Dona Maria de Fátima conhecia da vida está quebrado e remontado em sua frente: não somos nada além de um saco de ossos, músculos e sangue. O ser humano puramente como ele é.

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